quinta-feira, 20 de setembro de 2018

A Chuva

"Ela olha pela janela. Pessoas passando, chuva passando, tempo passando.

Dói-lhe a cabeça. Luta para não se render às aspirinas, tentando descobrir o porquê da dor de cabeça. Às vezes funciona. Quando descobre algo excessivamente inacabado em seus pensamentos, a cabeça já não precisa mais doer para lembrá-la daquilo e então consegue curar a sua própria dor. Pelo menos a da cabeça.

Nesse momento, enquanto mentalmente retoma os últimos acontecimentos, é acometida por uma invasão de lucidez. Relâmpago de consciência. Um raio na cabeça. E, ao olhar na janela, vê um borrão. Não vê a vida passar, mas vê a vida querendo ficar. As coisas e as pessoas (qual é a diferença?) ganham tons fortes, cores salgadas, brilhos opacos, movimentos articulados.

Pensa: - Será? Duvida das coisas que passam por sua cabeça. As coisas ganharam vida ou seria ela que tinha ganho um olhar? Porque vocês sabem, ver e olhar são coisas muito diferentes. E é isso que ela pensa: que tinha ganho um relâmpago de olhar. Olhar é coisa que ultrapassa o sentido da visão.

- Olhar arrepia, né? - quase pensa alto. Difícil isso de olhar as coisas fora de você. Dá até uma dorzinha cretina no peito... mas boa.

Às vezes, é tao ensimesmada que se esquece que as coisas ao seu redor também têm vida.

Fazia tanto esforço para se manter viva que a cabeça latejava. Dor de cabeça. Dor essa que não era localizada, espalhava-se. Para lembrar que tinha uma cabeça, ela doía.

Às vezes isso também acontecia com o corpo. Doía para lembrar que existia. Porque ter um corpo lhe era angustiante. O corpo é uma prisão, onde se está condenado a passar a vida. Claustrofóbico!

Queria não ter um corpo e sair se esparramando mundo afora... Teria coragem para isso? Alguém tem?

E, da janela, passando pelo túnel da visão, atingindo o olhar, ela sentia as coisas fora de si acontecendo. E refletindo dentro de si. Estava presa dentro de seu corpo. E isso era viver" (Ana Suy Sesarino Kuss).